Sob governo de Temer, o país é para poucos
Cortes do governo interino no orçamento e golpes na Constituição limitam alcance do SUS, do Bolsa Família, do Minha Casa, Minha Vida e da educação pública
por Cida de Oliveira publicado 12/06/2016 16:45
ROBERTO PARIZOTTI/CUT
Sem retrocesso. Manifestante prepara cartaz para protesto em frente à Faculdade de Saúde Pública da USP, em São Paulo
Segundo a visão de país expressa no documento Uma Ponte para o Futuro, do PMDB, apenas 10 milhões de brasileiros – os 5% mais pobres – devem ser alcançados pelo sistema de proteção social. Menos de duas semanas depois de “empossado”, o governo do presidente interino, Michel Temer, com seu pacote de ajuste fiscal aprovado a toque de caixa pelo Congresso, golpeou de uma só canetada a saúde e a educação pública historicamente subfinanciadas e políticas recentes de distribuição de renda. Nas palavras da senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), uma catástrofe para a sociedade, “menos para a elite rentista, preguiçosa e escravagista que ainda há no Brasil”.
Em seus primeiros dias à frente do Ministério da Saúde, o deputado federal licenciado Ricardo Barros (PP-PR) defendia o redimensionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) ao tamanho de seu orçamento. Nas entrelinhas, aventava mudanças, ou o fim, de programas como o Mais Médicos, o principal para o setor criado ainda na primeira gestão da presidenta afastada Dilma Rousseff. Único sistema público de acesso universal à saúde existente em país com mais de 100 milhões de habitantes e invejado por governantes de vários países, o SUS nunca esteve tão exposto ao perigo de extinção.
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) estima perdas entre R$ 44 bilhões e R$ 65 bilhões para o SUS já em 2017. Serão afetadas ações na atenção básica – como vacinas, medicamentos, controle de doenças, Samu – e de média e alta complexidade – como procedimentos, exames, cirurgias, transplantes e UTI, inclusive nas Santas Casas que recebem repasses do SUS. O colegiado chama atenção para outra ameaça: a aprovação, em primeiro turno no Senado, do substitutivo à proposta de emenda à Constituição (PEC) que prorroga a Desvinculação das Receitas da União (DRU).
O mecanismo deixa o governo livre para usar como quiser parte dos impostos vinculados por lei a determinadas áreas, já instituídos ou que vierem a ser criados nos próximos quatro anos. Existe desde 1994 (com diversos nomes, mas com mesmo objetivo), sempre permitindo o manejo de 20% dos orçamentos. Pela proposta, porém, sobe para 30% o percentual de manobra pela União – estados, municípios e o Distrito Federal também terão essa prerrogativa.
O Conselho Nacional de Saúde protestou, já que havia defendido a ampliação dos recursos ao SUS por meio da Lei de Iniciativa Popular nº 321/2013, que cobra 10% das receitas correntes brutas da União, ou seu equivalente, para ações e serviços públicos de saúde. Pelas contas do CNS, a combinação de emendas à Constituição e projetos de lei em andamento, União, estados, Distrito Federal e municípios poderão tirar da saúde até R$ 80 bilhões nos próximos sete anos.
“Estão ameaçando as políticas públicas da Saúde, as leis trabalhistas, os direitos dos aposentados. Com o silêncio da mídia, estão armando um ataque ao pouco da política pública que o Brasil construiu. Dizem que o povo brasileiro não cabe no orçamento do Estado, não cabe no aeroporto, não cabe na praia. Temos de resistir”, diz o presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Gastão Wagner de Sousa Campos, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Na última semana de maio, profissionais, professores e estudantes ocuparam a sede do Ministério da Saúde em Salvador. E na primeira semana de junho, dedicada a atividades em defesa do SUS, Ricardo Barros foi escrachado em Fortaleza por integrantes da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares. O jeito foi sair de fininho, sem fazer o pronunciamento de praxe na abertura do congresso do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
Educação
A exemplo dos postos de saúde e dos hospitais, as escolas públicas tendem a, na melhor das hipóteses, manter a tendência de sucateamento: fechamento de salas de aula, superlotação de turmas, piora na merenda e na conservação dos prédios e achatamento salarial dos trabalhadores – apesar de o ensino básico ser atribuição direta de estados e municípios, a União participa do financiamento por meio de repasses e convênios.
O coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, adverte: “Para sanar essas dificuldades é preciso ampliar os investimentos no setor. Por isso, o Plano Nacional de Educação aponta para o aumento dos investimentos federais no setor até chegar a 10% do PIB. Em vez disso, o governo sinaliza reduzir. Está em risco a educação e seus 40 milhões de alunos, 2 milhões de professores e 5 milhões de outros profissionais em todo o país”. Segundo ele, “a maior política social do Brasil e uma das maiores do mundo está ameaçada pela insuficiência dos recursos para as necessidades educacionais atuais”.
A situação pode piorar porque, embora a pressão social tenha poupado a educação dos efeitos da DRU no primeiro turno da votação, prefeitos e governadores pressionam fortemente pela inclusão nas próximas etapas da tramitação. Programas mantidos pelo governo federal, como ProUni, Pronatec e Ciência sem Fronteiras estão ameaçados, bem como a expansão do ensino superior. Abrem-se perspectivas de privatização em todos os níveis de ensino, com a volta do debate sobre a cobrança de mensalidades até nas universidades públicas.
Há sinais de retrocesso também no aspecto pedagógico diante da influência de setores conservadores com a equipe de governo interino. Exemplo emblemático foi a recente participação do ex-ator em atividade Alexandre Frota com o ministro da Educação, Mendonça Filho. Frota, que trocou o espaço perdido na TV pelo sempre promissor mercado de pornografia, deve ter muito a discutir com uma autoridade em educação. E com o crescente debate em torno de leis e propostas em várias cidades do país conduzidas por pessoas interessadas em coibir o exercício do pensamento crítico em escolas e universidades.
Coordenador do Fórum Nacional de Educação e secretário de Assuntos Educacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo aponta ainda ameaças ao caráter público, laico, inclusivo e democrático do processo educativo. “Preocupa o espaço dado pelo MEC a movimentos que tentam cercear atuação do professor, como o Escola Sem Partido e o Escola Livre. Trata-se de iniciativas intimidatórias, que censuram o livre pensamento e promovem a criminalização e a insegurança aos professores”, afirma.
Para completar o início avassalador de “gestão em exercício”, Mendonça Filho exonerou no início de junho 31 assessores técnicos, sendo 23 ligados à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) e oito, à Secretaria-Executiva da pasta. As demissões afetam as atividades do Fórum Nacional de Educação (FNE), instância criada com objetivo de mediar a interlocução e promover a participação social, seja no processo de concepção, aplicação e avaliação de políticas de ensino, além de acompanhar tramitação de projetos legislativos referentes ao setor e a implementação do Plano Nacional de Educação (PNE). “Ficamos sem equipe de trabalho”, lamenta Heleno Araújo.
Bolsa Família
Pelos cálculos de pesquisadores da Fundação Perseu Abramo (FPA), pelo menos 10 milhões de famílias que necessitam do Bolsa Família deverão deixar de ser atendidas a partir de 2017. A premiada política de transferência de renda – que além de dar um mínimo de segurança a milhares de famílias, estimular economias locais em milhares de municípios e inspirar diversos governos também por incentivar famílias pobres a manter seus filhos na escola e em dia com a vacinação e outras ações de promoção da saúde – deverá estar voltada para os 5% mais pobres entre todos os pobres do país.
Além da redução do número de bolsistas, os cortes apontam para congelamento dos benefícios concedidos. As projeções da FPA mostram o estrago inclusive em estados ricos, que concentram bolsões de pobreza em suas regiões metropolitanas. Pelo documento do PMDB que marcou o rompimento do partido com o governo no ano passado, as populações carentes estariam concentradas apenas em comunidades isoladas e esparsas.
Para o presidente da FPA, Marcio Pochmann, o impacto social será significativo, com agravamento da exclusão social. “Haverá aumento da pobreza, subnutrição, violência, com maior impacto sobre o sistema de saúde. E evasão escolar, já que a frequência à escola é condição para recebimento da bolsa. Poucos estados mantiveram seus programas próprios de transferência de renda. A maioria os desarticulou, reunindo-se em torno do programa federal. Há cidades em que mais da metade da população está na pobreza”, diz o economista.
Minha Casa
Temer chegou a anunciar em meados de maio o fim de subsídios do Tesouro Nacional para o Minha Casa, Minha Vida. Com a medida, a renda de famílias que ganham até R$ 1.800 ficaria comprometida com a prestação da casa. Em bate-bapo com internautas, a presidenta Dilma Rousseff lembrou que 80% do déficit habitacional está justamente nesta faixa de renda. “Além de acabar com o subsídio, o governo provisório vai reduzir o número de moradias que serão contratadas”, afirmou. Questionada sobre a possibilidade de o governo interino elevar as parcelas dos imóveis, mesmo daqueles comprados com sistema de parcelas fixas, a presidenta disse: “Não sabemos até que ponto eles irão no desmonte do Minha Casa, Minha Vida. Fique de olho. Nós estaremos”.
Em 1º de junho, liderados pela Frente Povo Sem Medo, manifestantes ocuparam o prédio onde fica o escritório em São Paulo da Presidência da República, na Avenida Paulista. Exigiam a manutenção do compromisso de construção de 11.250 unidades habitacionais. Portaria determinando a contratação das obras havia sido assinada por Dilma, e revogada pelo interino. A medida afetaria uma modalidade do programa administrada por entidades da sociedade civil de forma associativa, que torna, segundo experiências já executadas, as construções melhores e mais baratas.
Sem admitir o temor de desgaste pela força da mobilização popular – a mesma que fez com que Temer recriasse o Ministério da Cultura dias após sua extinção –, o ministro das Cidades, Bruno Araújo, recuou e anunciou a publicação de nova portaria para a contratação de 13.900 moradias. Os manifestantes desocuparam o prédio.
Criado em 2009, o programa abriu 5 milhões de empregos em toda cadeia produtiva da construção civil. Até o final de abril, foram contratadas mais de 4 milhões de moradias que beneficiam mais de 6 milhões de pessoas. O programa pode custear até 90% do valor do imóvel e o restante é dividido em até dez anos, com parcela mínima de R$ 80 e máxima de R$ 270. Como lembrou Dilma em conversa com internautas, o governo interino já demonstrou ser contra qualquer subsídio para os mais pobres. “Acreditamos que eles, do jeito que vão, são capazes de tudo.”
A Cultura preterida
A fusão do Ministério da Cultura (MinC) com o da Educação pelo governo interino, a pretexto de economia, durou uma semana. Temer anunciou a recriação da pasta em 21 de maio, quando a pressão de artistas era grande em atos, na imprensa e nas redes sociais, e havia órgãos ligados ao MinC ocupados em 18 estados, incluindo a sede da Fundação Nacional de Artes (Funarte), no Rio de Janeiro.
Em mais uma sucessão de tropeços, Temer chegou a mandar a senadora Marta Suplicy (PMDB-SP) convidar a jornalista Marília Gabriela – que afirmou publicamente não compor governo golpista. A atriz Bruna Lombardi, a antropóloga Claudia Leitão e a professora Elaine Costa, coordenadora de cursos de pós-graduação na Fundação Getúlio Vargas, também recusaram. O posto acabou ocupado pelo secretário municipal de Cultura do Rio de Janeiro, Marcelo Calero, que tomou posse em 24 de maio.
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